· Renata · Direito da Saúde · 4 min read
A negativa indireta dos planos de saúde na cobertura da terapia ABA - uma prática abusiva que viola o direito à saúde
É comum que os familiares de pacientes autistas escutem da operadora que “não houve negativa”, uma vez que o plano estaria “cobrindo alguma coisa”. Porém, sob a ótica jurídica, essa conduta caracteriza-se como uma negativa indireta de cobertura.
Nos últimos anos, o número de demandas judiciais envolvendo a cobertura de terapias para pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) aumentou significativamente. Em especial, destaca-se a busca por acesso à metodologia ABA (Análise do Comportamento Aplicada), amplamente reconhecida como eficaz para promover o desenvolvimento cognitivo e comportamental de crianças diagnosticadas com TEA.
Entretanto, mesmo diante da prescrição médica clara indicando a necessidade de uma carga horária específica e metodologia determinada, muitas operadoras de planos de saúde adotam uma prática sutil, porém igualmente lesiva: autorizam um número reduzido de sessões ou indicam terapias genéricas, distintas daquela recomendada pelo profissional que acompanha o paciente. Em outras situações, autorizam apenas parte das horas semanais prescritas ou, ainda, impõem limitações não previstas nas diretrizes terapêuticas.
1. A diferença entre autorização parcial e negativa de cobertura
É comum que os familiares de pacientes autistas escutem da operadora que “não houve negativa”, uma vez que o plano estaria “cobrindo alguma coisa”. Porém, sob a ótica jurídica, essa conduta caracteriza-se como uma negativa indireta de cobertura. A autorização parcial — por exemplo, liberar 2 sessões semanais quando foram prescritas 10 — fere o princípio da integralidade do tratamento e viola a prescrição médica, substituindo de forma indevida a indicação técnica do profissional assistente pela conveniência econômica da operadora.
Não se trata, portanto, de uma simples divergência quantitativa. O Judiciário já reconheceu reiteradamente que o plano de saúde não pode se imiscuir na conduta terapêutica ao limitar a forma, a frequência ou a metodologia do tratamento prescrito:
“(…) 3. Em 2022, a Agência Nacional de Saúde Suplementar editou a RN ANS n. 539/2022, art. 6º, § 4º, da RN-ANS n. 465/2021, que ampliou as regras de cobertura para o tratamento para pacientes com transtornos e, entre outras publicadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, vem sendo adotada pelo Superior Tribunal de Justiça para embasar a determinação às operadoras de plano de saúde, da cobertura de terapia multidisciplinar, inclusive pelo método ABA (Applied Behavior Analysis), sem limites de sessões, para pacientes diagnosticados com Transtorno do Espectro Autista bem como outros transtornos globais de desenvolvimento. 4. Jurisprudência pacificada no âmbito desta Turma no sentido da abusividade da limitação do número de sessões de terapia multidisciplinar a paciente diagnosticado com Transtorno Global de Desenvolvimento. Superveniência de normas regulatórias excluindo a limitação do número de sessões de fisioterapia, terapia ocupacional e psicoterapia”
(RN ANS 469/2021 e 593/2022)
— STJ - AgInt no REsp: 1953734 SP 2021/0229947-0, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Julgamento: 20/11/2023, Publicação: DJe 22/11/2023
2. A jurisprudência e os limites da operadora
O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento consolidado no sentido de que o plano de saúde não pode interferir na indicação médica, sob pena de violar o direito fundamental à saúde, previsto no artigo 6º da Constituição Federal. Ainda que a cobertura da terapia em si esteja formalmente prevista no rol da ANS ou no contrato, o fornecimento parcial, incompleto ou genérico constitui inadimplemento contratual e afronta ao artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor.
A jurisprudência majoritária tem interpretado que a limitação injustificada da carga horária ou da metodologia específica de terapia (como a ABA) é abusiva e ilegítima, ensejando inclusive indenização por danos morais em algumas hipóteses.
3. A falácia da “autorização parcial” e o dever de informação
A postura da operadora ao declarar que “não houve negativa” busca transmitir a falsa impressão de que está cumprindo com suas obrigações contratuais e legais. Essa comunicação omissiva ou ambígua viola o dever de informação clara, adequada e transparente (art. 6º, III, do CDC), confundindo o consumidor e dificultando o acesso pleno ao tratamento indicado.
Ademais, é preciso alertar que não cabe à operadora de saúde substituir a prescrição médica por critérios administrativos, tampouco limitar a cobertura com base em entendimentos internos, protocolos próprios ou supostas “diretrizes de uso” que contrariem a indicação profissional.
4. Conclusão: a importância da conscientização e da atuação jurídica
Portanto, ao contrário do que muitos consumidores acreditam, a autorização parcial, insuficiente ou inadequada de terapias indicadas por prescrição médica constitui sim uma negativa de cobertura — ainda que disfarçada sob o argumento de que o plano “está fornecendo algo”.
É fundamental que as famílias busquem orientação jurídica especializada diante dessas situações, pois os tribunais têm assegurado o direito à cobertura integral do tratamento prescrito, inclusive quanto à carga horária, frequência e metodologia indicadas.
Caso o plano de saúde insista em conduta abusiva, é plenamente viável o ajuizamento de ação judicial com pedido de tutela de urgência, visando garantir de forma célere o acesso à terapia adequada, além da eventual reparação pelos danos sofridos.
Renata Deotti – OAB/RJ 176.738
Especialista em Direito Médico e da Saúde pela PUC-RJ
Sócia do escritório Moraes & Deotti Advocacia
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